Os impactos desiguais da COVID-19 na população negra no Brasil

Ao longo da pandemia de COVID-19, as desigualdades raciais pré-existentes no Brasil têm se intensificado ainda mais, afetando vidas negras em todos os aspectos possíveis: educação, acesso à saúde e a serviços de alta complexidade, saneamento básico, segurança alimentar, moradia, mercado de trabalho, acesso à renda e tantos outros que, direta ou indiretamente, favorecem sua exposição ao vírus e à morte. Enquanto camadas mais privilegiadas da sociedade – de maioria branca – possuem recursos que lhes asseguram a possibilidade de cumprir com o isolamento social trabalhando em casa, profissionais informais e precarizados, majoritariamente negros, seguem cada vez mais expostos. Afinal, os negros são frequentemente empregados como trabalhadores essenciais, cujo trabalho possibilita que outros se isolem em casa, ao mesmo tempo que pessoas pretas e pardas se expõe a riscos. E para acessar o sistema de saúde essa população enfrenta maior tempo de deslocamento e menor disponibilidade de serviços associado às condições precárias dos serviços de saúde das áreas periféricas onde se concentra a população negra.

Os números da desigualdade racial

  • Em 2020, o excesso de mortalidade foi de 28% entre pretos e pardos em comparação com 18% entre pessoas de cor branca.

  • Esta diferença, em números absolutos, representa 36 mil óbitos a mais entre pessoas de cor preta e parda em relação às brancas.

Para medir a desigualdade racial na morte pela COVID-19, foi construído um indicador sobre excesso de mortalidade por raça/cor para avaliar os efeitos diretos e indiretos da pandemia. O excesso de mortalidade observado é resultado de três causas: óbitos por COVID-19, óbitos por COVID-19 que não foram declarados assim e óbitos provocados indiretamente pela pandemia. Por exemplo, mortes provocadas pela sobrecarga nos serviços de saúde, pela interrupção de tratamento de doenças crônicas ou pela resistência de pacientes em buscar assistência à saúde - pelo medo de se infectar pelo novo coronavírus - devem ser contabilizadas.

O excesso de mortalidade em 2020 no Brasil foi de 270 mil mortes (22%). Ou seja, esse foi o número de pessoas que morreram acima do esperado para o ano. No entanto, a pandemia da COVID-19 afetou de forma desproporcional a população negra, resultando em um excesso de mortalidade de 28% (153 mil mortes) de pessoas pretas e pardas. A análise estratificada por raça/cor, idade, sexo e região é fundamental para identificar os grupos mais vulneráveis e orientar políticas públicas que visem corrigir essas distorções.

Desigualdades por idade

Em todas as faixas etárias, pessoas pretas e pardas morreram proporcionalmente mais do que as brancas.

Desigualdade entre homens e mulheres

No geral, os homens tiveram maior excesso de mortes que as mulheres e podemos observar uma diferença nos óbitos por raça/cor. Os homens, principalmente pretos e pardos, morreram mais de COVID-19 do que as mulheres. 

  • Entre os homens negros, o excesso de mortalidade foi 55% maior quando comparado à mortalidade dos homens brancos.

  • O excesso de mortalidade de mulheres negras foi 57% maior que o de mulheres brancas.

Os homens pretos e pardos morreram 2X mais do que as mulheres brancas.

Desigualdades regionais

Metade da população brasileira é composta por pessoas pretas e pardas, variando de 26% no Sul a 81% no Norte. Em todas as regiões, observou-se excesso de mortalidade em 2020, destacando-se a região Norte, que chegou a 40% no período. Nessa região, o Amazonas teve um excesso de mortalidade de 49%.

Já nas regiões Sul e Sudeste, as desigualdades raciais do impacto da pandemia são maiores do que no Norte. Apesar da menor população negra, o excesso de mortalidade entre pessoas pretas e pardas foi quase duas vezes maior do que entre pessoas de cor branca, em especial no estado de São Paulo, em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul e no Paraná.

Desigualdades de renda

Dois terços das pessoas que dependem exclusivamente do auxílio emergencial criado pelo Congresso Nacional e pelo Governo Federal brasileiros são negras, apesar de serem apenas metade da população em geral. De acordo com dados de novembro coletados pelo IBGE e analisados pelo AFRO, mesmo com o auxílio emergencial, a população negra já vinha com altas taxas de pobreza: 20,4% deles viviam em casas com renda familiar per capita inferior a um terço do salário mínimo. A remoção deste benefício elevaria esta taxa para 28,7%, enquanto a população branca sairia de um patamar de 9,8% para 14,3%. Nem mesmo se for distribuído somente entre a população negra, o auxílio emergencial é capaz de equiparar o nível de renda entre pessoas negras e brancas.

Composição racial de toda população brasileira cuja renda foi apenas a Renda Básica Emergencial em algum momento entre maio e novembro de 2020

Elaboração: Afro-CEBRAP. Fonte: PNAD COVID19 / IBGE, 2020.

Elaboração: Afro-CEBRAP. Fonte: PNAD COVID19 / IBGE, 2020.

Taxa de pobreza na população geral, com e sem auxílio emergencial, por raça/cor, em maio e novembro de 2020

Elaboração: Afro-CEBRAP. Fonte: PNAD COVID19 / IBGE, 2020.

Elaboração: Afro-CEBRAP. Fonte: PNAD COVID19 / IBGE, 2020.

As pessoas negras são vítimas de desigualdade de rendimentos ao longo de toda a sua vida e, mesmo quando se aposentam, continuam sendo mais afetadas pela pobreza que os brancos. As diferenças mais espantosas acontecem quando observamos que, entre negros, metade (47%) dos menores de idade e um terço (33%) dos jovens adultos (pessoas de 18 a 29 anos) vivem em famílias abaixo da linha da pobreza. Entre os brancos, as porcentagens são de 28% e 17%, o que significa que a pobreza é 40% e 47% menor nestes grupos etários.

Proporção de brasileiros morando em domicílios pobres, por raça/cor e faixa etária (anos), em 2020

Elaboração: Afro-CEBRAP. Fonte: PNAD COVID19 / IBGE, 2020.

Elaboração: Afro-CEBRAP. Fonte: PNAD COVID19 / IBGE, 2020.

A perda de um(a) chefe de domicílio, por exemplo, pode ter vários impactos na vida destas crianças pobres, deixando-as parcial ou totalmente desassistidas. Também gera pressões adicionais sobre jovens adultos(as) recém-chegados no mercado de trabalho, mais suscetíveis a serem obrigados a complementar a renda. Quando hipoteticamente suprimimos o auxílio emergencial dos domicílios, notamos que há mais pessoas vivendo sob a pobreza em lares com chefes de família negros(as) em todas as regiões do país. Entre maio e novembro de 2020, 43% das pessoas que viviam em domicílios chefiados por pessoas pardas e 41% dos que viviam em domicílios chefiados por pessoas pretas na região Nordeste eram pobres. Para os brancos, a taxa situava-se nos 33%. Na região menos atingida pela pobreza (o Sul), havia também uma grande diferença: a taxa de pobreza das famílias pretas e pardas era o dobro das famílias brancas. Considerando que o excesso de mortalidade foi maior entre negros, as desigualdades serão agravadas.

Proporção de pessoas pobres nos domicílios chefiados por pessoas brancas, pretas e pardas por região do Brasil, em 2020

Elaboração: Afro-CEBRAP. Fonte: PNAD COVID19 / IBGE, 2020.

Elaboração: Afro-CEBRAP. Fonte: PNAD COVID19 / IBGE, 2020.

Considerações finais

O excesso de mortalidade observado na população negra no Brasil reafirma a importância de utilizarmos a desigualdade racial como fator para orientar a resposta à pandemia da COVID-19, bem como orientar as políticas públicas necessárias para reparar os danos causados às famílias pretas e pardas. Essas famílias são submetidas a antigas desigualdades que se alargaram durante a pandemia do coronavírus, afetando vários campos da vida social: acesso e condições de saúde, infraestrutura doméstica, qualidade da educação, recursos financeiros e segurança empregatícia são alguns exemplos.

As desigualdades observadas no estudo reafirmam que a população negra é mais vulnerável e teve um maior excesso de mortalidade devido à COVID-19, nos levando a afirmar que a COVID-19 não é uma epidemia, mas sim uma sindemia [1]. Tanto pesquisadores que atuam com sindemias (campo de pesquisa  com raízes na antropologia médica) quanto no campo da saúde e dos direitos humanos, reconhecem que os determinantes sociais, políticos e estruturais contribuem mais para as desigualdades em saúde do que fatores biológicos ou escolhas pessoais [2]. Uma sindemia não é apenas uma comorbidade. São caracterizadas por interações biológicas e sociais, interações que aumentam a suscetibilidade de uma pessoa a doenças e a perda da saúde ao longo da vida [3].

Não é aleatório que a população negra tenha mais comorbidades para COVID-19 e menor acesso aos serviços de saúde. Esta é uma desigualdade crônica, existente desde a escravidão e que não foi superada por políticas públicas. Culpam-se os doentes e mortos pela COVID-19 por seu mau estado de saúde, afinal eram hipertensos, diabéticos, obesos, cardíacos, asmáticos etc., mas não se fala que essa é uma tragédia anunciada há muitos anos, de uma desigualdade social que nega a muitas pessoas uma vida saudável e o próprio direito à vida.


[1] Singer M, Bulled N, Ostrach B, Mendenhall E. Syndemics and the biosocial conception of health. Lancet, 2017, 389(10072): 941-950.

[2] Willen SS, Knipper M, Abadía-Barrero CE, Davidovitch N. Syndemic vulnerability and the right to health. Lancet, 2017, 389(10072): 964-977

[3] Horton R. COVID-19 is not a pandemic. Lancet, 2020, 396: 874.